Fábio Camargo
7 min readDec 19, 2019

Três horas após o jantar. Era o tempo que levava para seu pai ficar bêbado a ponto de cair no sono, debruçado sobre algum livro. Em uma noite qualquer, Hildur entraria na biblioteca, apagaria a vela, acordaria seu pai e o conduziria, em parte bêbado, em parte sonâmbulo, para a cama. Ao invés disso, andava pela casa coletando um espelho, um pedaço de queijo duro, algumas postas de peixe salgado, uma corda, enfim, o que coubesse em sua mochila de pano.

Não se preocupou em dissimular o que fazia. Depois que entrava na biblioteca, o pai saía apenas para usar a latrina. E há tempos não demonstrava interesse algum no que quer que ela fizesse. Mas não fora sempre assim.

Embora Gunnar Jónsson não fosse um combatente inepto, como não era qualquer Ulfen que se prezasse, sempre fora mais dado às letras que às armas. Era um homem gentil e devotado à família. Hildur percebeu desde muito cedo que seu pai era um homem diferente, mas naquela época o adorava por isso. Passavam horas na biblioteca lendo sobre guerreiros lendários, sobre a terrível Baba Yaga, sobre as histórias de glória e traição que formaram os reinos do norte. Sua hora preferida do dia era quando a mãe pegava a rabeca e se juntava eles, preenchendo a sala com música, entoando as canções dos livros.

Hildur ficou mais que contente ao saber que esperava um irmão. O ensinaria a ler e cantar, como seu pai e mãe tinha feito com ela, o cuidaria e amaria para sempre.

A vida dela e de seu pai entraram num longo inverno quando morreram a tão desejada criança e a mãe naquele parto. Ela tinha oito anos na época, mas a agitação da parteira, o entra e sai de panos ensanguentados daquele quarto volta e meia retornavam vívidos em seus sonhos, como se estivesse tudo acontecendo novamente diante de seus olhos.

Gunnar ficou três longos meses de cama após o ocorrido, pálido e cadavérico, se limitando a balbuciar algumas palavras incompreensíveis entre intermináveis crises de choro. Hildur fez o melhor que pôde para manter seu pai alimentado, mas não tinha força suficiente para mantê-lo limpo. Trazia livros da biblioteca e se aninhava em seu braço para ler com ele, na esperança que respondesse ao estímulo. Tentou até o cheiro dele tornar-se insuportável.

Nos últimos tempos de doença, Hildur se limitava a cuidar das refeições diárias, que ele nem sempre comia, e a esvaziar a bacia onde ele fazia as necessidades.

Alguns pessoas vinham consultá-lo sobre algum evento histórico, uma pessoa em particular ou alguma notícia vinda do sul. Ela sabia que o pai cobrava por esses serviços e, quando ela tinha a resposta que procuravam, também cobrava. Quando não tinha, mandava a pessoa embora.

Conseguia suprir as necessidades básica da casa com isso, e eventualmente cantando nas ruas.

O rumor sobre o estado que se encontrava seu pai correu pelos portos, e as crianças começaram a zombar dela, chamando-o de ‘carroça de bosta’, ‘lá vai a filha da carroça de bosta’. Um dia, farta de toda importunação, correu para casa, pegou a espada do pai e, atacando pelas costas, decepou o braço de um menino com o dobro do seu tamanho. As zombarias cessaram, ao menos na frente dela, mas sua raiva crescia a cada dia, e estava sempre coberta de hematomas. Embora geralmente menores do que aqueles que ela costumava deixar nos outros.

Aos poucos Gunnar recobrou um pouco do ânimo, mas o que levantou daquela cama era uma casca, uma ruína de homem. Mal dirigia a palavra a Hildur e, quando fazia, parecia retornar de um transe. Demorava uns instantes para responder qualquer pergunta, e praticamente não saía da biblioteca. Vez que outra ia ao porto receber algum livro ou pergaminho encomendado.

No início Hildur sentia por ele, mas a piedade foi se tornando desprezo conforme cresceu. Como pudera chegar naquele estado um homem que partilhou bebida na mesa de sua casa com o próprio Ingimundr? Como podia recusar a vida, e ousar continuar vivendo?

Certo dia compreendeu que seu pai era um homem fraco demais para viver, covarde o bastante para não se matar, e estava disposta a jamais cometer o erro da mãe. Conforme a adolescência foi chegando, era doce e delicada com as meninas que arrastava para o quarto. Mas com os meninos era diferente. Mordia-lhes os lábios e os esbofeteava enquanto descia a mão no meio das pernas deles, invariavelmente duros. Muitos a adoravam exatamente por isso, certos de que teriam uma chance com ela. Ela se limitava a sorrir e dizer — Me derrube num combate e eu sou sua — E não foram poucos cair.

Não era particularmente robusta, mas surpreendentemente forte, como aprenderam os incautos. Sua virgindade virou motivo de apostas entre os garotos do porto, e isso só lhes atiçava a vontade.

E agora estava prestes a deixar os garotos do porto, uma porção de adoráveis meninas apaixonadas e a ruína de seu pai para trás. Havia combinado com a trupe de atores à meia-noite, no porto das focas. Estava segura que a trupe eram um pequeno grupo de criminosos que escondiam suas reais atividades sobre o álibi de serem artistas. Ao menos assim esperava, pois eram todos um pouco melhores que péssimos. A presença dela no grupo daria mais credibilidade ao disfarce, e em troca eles lhe tirariam daquele lugar. Por muitos anos gostou de ler as histórias, mas agora queria viver algumas, talvez até alguma que fosse digna de ser cantada pelas tabernas e prostíbulos. Não que fosse um ideal de vida, em verdade não lhe trazia tristeza alguma a ideia de morrer no esquecimento. A morte em si não lhe incomodava, o que lhe deixava inquieta era deixar de viver.

Ouviu o pai roncando na biblioteca. Conforme se aproximou a hora da partida, sentiu um medo e uma excitação que tanto lhe fizeram falta. Roubou sem o menor constrangimento a espada e o escudo do pai. Não se recordava da última vez que o viu empunhá-los, e seria de muito mais valia para ela que para ele. Ele, se percebesse, talvez nem ligasse. Talvez ficasse feliz de finalmente morar sozinho em seu mausoléu. Velho maldito. E lágrimas escorreram pelas bochechas, por mais que tivesse tentado conter o choro. Não sabia se chorava pela criança que havia sido, ou pelo homem que seu pai tinha se tornado. Recolheu as coisas, pegou a rabeca que fora de sua mãe e saiu.

Encontrou a trupe no lugar combinado, e agora esperavam o navio para Kalsgard em volta de uma fogueira. As ruas estavam vazias quando avistaram ao longe uma figura cambaleante. Se olharam num acordo tácito.

— Hildur, seria bom a gente ter uma garrafa de hidromel agora, não é? A noite tá fria… — disse o mais velho, apontando com os olhos para o vulto que dançava ladeira a cima.

Não podia titubear, sabia que a estavam testando. Um bêbado solitário era um alvo fácil, e ainda que não trouxesse ouro algum consigo, sempre poderiam vender o que quer que carregasse. Com sorte, talvez até uma arma boa ou uma pele de qualidade. Um cadáver não teria uso algum pra essas coisas.

Ólafur e Einar iriam na frente; Helgi, Pétur e Árni cuidariam da retaguarda e Hildur ficaria no centro. A vitória era garantida, ao menos foi isso que pensaram.

Enquanto se aproximavam, antes que Ólafur terminasse de sacar sua espada e anunciar o assalto, o vulto soltou um grunhido, se projetou para frente dele a uma velocidade impressionante e cravou a lâmina no lado esquerdo do pescoço até o peito. Não houve nem tempo de gritar. Hildur começou um cântico de guerra, o que permitiu Einar acertar uma espadada no braço daquele homem gigantesco, e Helgi a acertar uma flecha no outro. O homem, se sentiu os ferimentos, não foi impedido por eles: a espada voou pela direita de Einar, que bloqueou o golpe mas foi jogado para trás, perdendo o equilíbrio. Então a lâmina veio por baixo, e pela esquerda, quase partindo-o em dois.

Hildur não viu mais flechas além daquela cravada no braço esquerdo do homem, e quando olhou de relance para trás percebeu que os outros haviam fugido — COVARDES!!! — Quando o homem correu em sua direção, era bem claro que não o venceria pela força bruta. Uma montanha de fúria cega emoldurada numa barba ruiva investia em sua direção, e a um movimento de sua mão, a uma palavra de comando, a espada do homem escorregou e caiu ao lado dela. Se preparava para estocar a barriga do homem quando ele a desarmou com as mãos nuas, a levantou pelo pescoço, como se ela fosse um gato, e a jogou brutalmente contra o chão, mantendo e apertando o pescoço entre os dedos. Quando ele pegou a espada que havia caído e estocou na perna esquerda de Hildur, o sangue escorreu pela virilha dela e se confundiu com outro líquido que lá havia. A barba do homem mudou de cor, de um laranja fogo para um castanho opaco, sua respiração ficou menos ofegante e as veias que saltavam de seus braços desapareceram.

Hildur encarava o homem gigantesco em cima de si, quando lançou os braços envolta de seu pescoço e começou a beijá-lo com fúria, a abaixar suas calças. Só parou para levar a mão a perna ferida e lançar um encantamento para curá-la. Como cães no cio ficaram ali por uns minutos, gemendo entre os dois cadáveres. Depois estavam ambos confusos, ofegantes e exaustos. Se sentaram na amurada tosca separava a rua do porto, calados, como os cadáveres atrás de si. Coube a ela romper o silêncio.

— Qual teu nome?

— Svalk…

O homem seguia olhando para o mar, mas ela olhava para o homem.

—Ótimo…ótimo… O meu é Hildur… — sorriu e perguntou — Quer beber alguma coisa? Conheço um lugar aqui perto…

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programador, empresário, cozinheiro, filantropo, ator, músico, poeta, tarólogo e dramaturgo: coisas que falho em ser mas sigo tentando

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