— ONDE TÁ O TEU BANDO???
Antes que fosse possível responder qualquer coisa, o punho do homem acertou mais uma vez a pequena cara verde do prisioneiro. Estava meio pendurado, com as mãos firmemente atadas a uma corda no teto. Suas perninhas jaziam inertes, sem força pra sustentar o corpo, e aquele último golpe o tonteara ainda mais. As pontudas e desproporcionais orelhas apontavam para o chão, bolhas cobriam o corpo, e o inchaço nas pálpebras praticamente escondiam-lhe os olhos.
— Kavak…não…tem… — Falou com uma longa pausa entre as palavras, numa voz quase inaudível, e cuspiu uma bola de sangue. Sabia que aquela resposta não era a que queriam ouvir, mas tinha apanhado mais nas vezes que ficara em silêncio.
No galpão mal iluminado, cujas frestas anunciavam o pôr-do-sol, cada homem sentou num banco, suado e ofegante.
— Não adianta… ele não vai falar.
— E o que a gente faz?
— Sei lá, acho melhor a gente chamar os guardas e ir lá onde ele tava chamando a gente.
— Não! Eles não iam esperar esse tempo todo. A emboscada deve ter debandado.
— Bom…então vamos chamar algum guarda pra levar ele. Talvez consigam alguma informação, ou catar rastro naquele lugar. A recompensa deve ser pequena, mas pelo menos o dia de trabalho não vai ter sido em vão.
— Se ele não morrer até a gente voltar…
Os homens falavam entre si como se fossem os únicos no recinto. Saíram logo após recobrarem o fôlego por um instante, e pela primeira vez naquele dia deixaram o goblin sozinho.
A palha embaixo dele estava empapada em sangue e urina, e ele tinha muita sede. Não imaginava ainda ter forças para isso mas, logo após os homens saírem, chorou.
Jamais teria imaginado acabar o dia daquele jeito. Como todos os outros dias, ele e o homem a quem chamava de pai tinham acordado cedo, tomaram café com ovos mexidos, conversaram um pouco e começaram a trabalhar. A fazenda era pequena, mas dava bastante trabalho. As maçãs estalavam de maduras, tinham que dar conta de colher todas ou só restariam as passadas pra fazer compota. Uma que outra nesse estado era até bom, já que as compotas eram deliciosas e enquanto ferviam perfumavam de canela a casa. Não tinham como fazer pra vender, construir um grande fogão de barro e comprar uns tachos maiores eram daqueles planos que os dois faziam quando tinham tempo pra divagar sobre o futuro.
Naquele dia Kavak iria ao pomar sozinho, enquanto o homem consertaria o telhado. Uma rachadura havia surgido e pingava perto demais do fogão. Empurraram com a barriga por muito tempo o conserto, mas a época de chuva estava chegando e precisavam dar um jeito naquilo o quanto antes.
Kavak pegou as cestas, o carrinho, e foi em direção ao pomar. No meio do caminho havia o galinheiro onde o homem , oito anos atrás, entrou de noite acreditando que algum predador invadira mas, ao invés de raposa ou lagarto, encontrou uma criaturinha verde com pouco mais de dois palmos, com a cara enterrada nas vísceras de uma galinha. Kavak desde cedo foi criado pra fugir dos altos, mas naquela ocasião estava encurralado. Perdido do bando, com fome e assustado, entre ele e a porta havia um homem corpulento e bigodudo. Num último gesto de desespero, mostrou os dentes sujos de sangue e ensaiou um rosnado. O homem riu, se acocorou sobre as pernas , pôs as mãos espalmadas pra frente e começou a fazer um estranho e lento chiado com a boca. Lentamente, pegou dois ovos num ninho que tinha ao alcance das mãos, quebrou a casca de um e comeu cru. Ofereceu o outro a Kavak. O goblin se aproximou passo por passo, desconfiado, analisando o menor movimento. O homem não se movia, estava de cócoras estendendo um ovo para o goblin. Quando Kavak chegou perto o suficiente, tomou o ovo nas mãos , correu para o canto do galinheiro e comeu com casca e tudo.
O homem saiu, trancou a porta, e o pequeno intruso adormeceu vencido pelo sono. Acordou com um pano estranho sobre si, uma jarra com água e um prato com ovos mexidos ao seu lado. Cheirou tudo com muito cuidado, mas acabou comendo e bebendo tudo.
Naquela época Kavak não entendia o que o homem falava, mas percebeu que não lhe faria mal. O homem fazia uns sinais estranhos, ele respondia abaixando as orelhas a inclinando a cabeça. Depois de uns dias, o homem deixou a porta do galinheiro entreaberta. O goblin abriu e correu. Após quase quinze minutos de corrida desatinada, lembrou que não sabia pra onde ir. Quando tentou lembrar, lhe veio à mente a vida no bando. E os dias confinado no galinheiro, com comida, bebida, o pano estranho por cima a espantar o frio, o gordo bigodudo a não lhe dar pancada ou mostrar os dentes. Voltou.
Ao longo dos anos o gordo bigodudo ensinou o idioma comum e as tarefas da fazenda. Kavak aprendeu que aquele homem, assim como ele, não tinha mais bando. Teve um bando pequeno, uma alta e um filhote, mas os dois morreram de doença e o gordo bigodudo ficou sozinho.
A fazenda tinha uma mata muito cerrada em volta, e a única pessoa que visitava era um velho amigo do homem, caixeiro viajante que fazia questão de dar as caras por lá quando estava de passagem pela região. Das primeiras visitas Kavak se escondeu no sótão, mas um dia o homem contou a situação toda e o amigo, após certa relutância, compreendeu. Fora isso, o único contato que tinham juntos com o mundo externo era no festival do rum, em honra ao Deus Bebum, na cidade de Líriobranco. Para a ocasião, cobria Kavak de roupas e bandagens de tal forma que apenas seus olhos ficavam descobertos, e escondidos atrás de um óculos. Fora a dona da estalagem em que se hospedavam todo ano, dizia aos curiosos que Kavak era seu filho e que tinha uma doença de pele muito séria e contagiosa.
No fim do festival havia uma parada onde as pessoas desfilavam fantasiadas, e era a única vez no ano que Kavak se mostrava pras pessoas. Ainda que vestido de palhaço ou pirata, as pessoas acreditavam que ele estava vestido de goblin palhaço ou goblin pirata. A vida podia ser melhor, sem dúvida, mas ele sentia-se grato e satisfeito.
Naquele dia, enquanto colhia as maçãs, ouviu um grito de susto e um estrondo.
— Pai, tá tudo bem? — e não teve resposta.
— PAI? — perguntou mais alto, já descendo da macieira.
Correu em direção a casa e encontrou seu pai no chão, tremendo, purgando um líquido pelos ouvidos e um lado da cabeça tapado de sangue. Um degrau da escada partira e na queda bateu a cabeça com força contra um pedra.
Kavak tentou sacudir o homem e fazê-lo acordar, mas era inútil. Tentou arrastar o homem pelos sovacos, mas era muito pesado e o caminho até a estrada era muito longo. Não tinha tempo.
O homem tinha alertado que ele não esperasse qualquer outra coisa dos humanos que hostilidade, mas estava desesperado. Correu montanha abaixo na esperança de encontrar alguém que pudesse prestar socorro, ou levar o pai em algum curandeiro. Entre tropeços e galhos a lhe arranharem a carne, chegou ao sopé em pouco minutos.
Avistou ao longe, na beira do lago, dois fazendeiros dando de beber aos cavalos. Gritou na direção deles:
— Eeeeeei! Vocês! socorro!
Um homem pegou uma enxada e o outro um rastilho, enquanto o goblin se aproximava.
— O meu… amigo, fazendeiro, como vocês, caiu do telhado. Tá com a cabeça sangrando, me ajudem. Não é muito longe, é ali pra cima — disse muito afobado, apontando a direção
Os homens trocaram um olhar entre si, e encaravam mudos Kavak.
— Vocês vão me ajudar?
— Ahn… claro, claro. Só tenho que pegar uma coisa ali na carroça, podem ir que eu alcanço vocês. — E fez um sinal com a cabeça para o outro homem.
— Bom, onde que é?
Àquela pergunta, o goblin abriu um largo e estúpido sorriso, pegou o fazendeiro pela mão e começou a puxar.
Antes que a euforia passasse, o homem que levava pela mão lhe deu uma rasteira, fazendo-o tombar com a cara no chão. O joelho do homem pressionava seu peito contra o chão, enquanto as mãos mantinham a cabeça enfiada na terra e um braço imobilizado. O pequenino esperneava com a cara entre as folhas mortas, e as engolia enquanto tentava falar. Após uns segundos, um cabo qualquer acertou sua cabeça e ele perdeu os sentidos.
Acordou zonzo e completamente amarrado na carroça. O sangue que pôde ver já estava seco. Lembrou do pai e desesperou. Começou a chorar e a pedir aos homens pra irem na fazenda, indicando o caminho. A estrada era perto, o homem tava morrendo.
— Ah, olha quem acordou! Tu vê, né!? Esses cretinos tão cada vez mais espertos — Olhou pra trás enquanto segurava as rédeas.
— Sim, olha como ele fala bem. Será que eles andam aprendendo teatro agora? hahahahaha
— O danado é convincente, eu chego quase a ficar com pena.
— Eu tenho pena é de nós se esses filhos da puta tiverem vivendo aqui perto. Faz anos da última limpa já.
— Será que ainda tão dando recompensa?
— Acho que sim. No pior dos casos a gente chama o pessoal e desbaratina a tribo antes que eles procriem mais.
Enquanto os homens conversavam, Kavak alternava entre gritos de desespero, pedidos e choros. Se debatia muito na carroça, mas não conseguia se soltar nem pular pra fora.
— Ele não vai parar de espernear né? — Nisso, o homem pulou pra parte de trás e mais uma vez desacordou o prisioneiro com o cabo da enxada. Depois do golpe, acordou com um pano imenso dentro da boca, e estavam chegando na fazenda de um dos homens.
O levaram pra um galpão, o prenderam, e começaram a bater no pequeno , perguntando onde dormia o bando, em quantos eles eram.
— Ele…vai…morrer… ajuda— Conseguiu murmurar. Os homens responderam com uma sequência particularmente violenta de chutes e socos ao que acreditaram ser uma ameaça.
— O bichinho tem bolas — disse rindo para o outro homem — mas ele vai cuspir! Cedo ou tarde eles sempre falam.
E o homem acendeu o fogão no canto do galpão, pondo a ferver uma enorme panela com água.
Kavak não sabia o que dizer pra parar com aquilo, mentira ou verdade, os homens não paravam de lhe bater.
Numa última tentativa de levar os homens até seu pai, disse que o bando se escondia na fazenda, e que eram em quinze. Um ódio inédito surgiu na cara de um dos homens, que foi em direção ao fogão, pegou a panela pela alça coberta de panos, tremendo de raiva.
— FILHO DA PUTA! — E jogou a água fervente no goblin, que começou a berrar.
O outro homem desviou o olhar daquela cena grotesca , mas não disse nada.
— A gente sabe que a emboscada é lá. Quero saber onde tá o teu bando. O BANDO! Ou tu fala, ou tu morre. Pela última vez… ONDE TÁ O TEU BANDO?
Após as memórias dançarem confusas em sua cabeça, durante o choro que seguiu a ausência dos homens, conseguiu se alçar um pouco levando o nó que prendia suas mãos até perto da cabeça. Começou a cuspir o sangue no lugar do nó, tentava passá-lo na ferida que tinha na cabeça. Encharcou tanto o nó que depois de uns minutos uma mão escorregou pra fora do laço. Seu pai podia estar morto, mas não deixaria o corpo pros urubus.
Quando soltou a outra mão, depois de uns minutos conseguiu ficar mais ou menos em pé. Tratou de sair mancando do galpão, que eles tinham deixado aberto. Se sobrevivesse aquela noite, poderia chegar na fazenda. Não tinha condição de fugir do que quer que fosse, então se sujou de lama, buscou o primeiro tronco oco de árvore na floresta e se pôs ali dentro para dormir. Lembrava de um goblin velho do bando dizendo que a lama ajudava a encobrir o cheiro.
Dormiu um sono profundo, teve um pesadelo que os homens tiravam suas entranhas e botavam o resto de sua pele oca sobre a mão, usando-o como um fantoche. Sonhou com abutres lhe dilacerando as carnes e bicando os olhos, que caiu num rio de lava e a carne descolava dos ossos.
Depois que acordou , ficou mais umas horas no toco de árvore, a comer os insetos. Se estivessem a sua procura ainda não estava em condições de fugir. Quando saiu, se embrenhou na mata, sempre nas partes mais fechadas.
Chegando na fazenda viu seu pai meio decomposto, com a boca aberta e os olhos arregalados, olhando pro céu. Aquilo tudo, e as muitas dores de seu corpo, pareciam irreais.
Agindo mecanicamente, entrou na casa, organizou as poucas coisas que tinha numa mochila, pegou o dinheiro que seu pai escondia embaixo de uma tábua solta do assoalho, as roupas que usava como disfarce e, por fim, uma pá.
Começou a cavar ao lado de onde estava enterrados esposa e filho de seu pair Fez tudo num ritmo lento, mas constante. Demorou horas pava cavar o buraco, uma outra para botar o homem lá dentro, e algumas outras para tapar a cova.
Entendia muitas coisas sobre os humanos, mas sua forma de lidar com a morte era uma lição por aprender. Pegou a caneca preferida de seu pai, uma garrafa de rum, tomou um generoso gole, encheu a caneca, pôs em cima da cova, e fez um círculo em volta com o resto do rum.
Acabado tudo, caiu de joelhos em frente a cova e chorou até adormecer. Sua vida acabara ali. O que quer que viesse, seria outra coisa. Acordou, abriu a porta do galinheiro, cobriu seu corpo com as bandagens, desceu o monte e costeou a estrada, procurava um bote para roubar, e seguir rio abaixo. Para sempre.