O navio seguia em ritmo lento e constante pelo oceano arcádio. Os ventos eram calmos, e o navio demasiado grande. Se avistado a distância, poderia facilmente ser confundido com alguma besta marítima.
O ventre escuro dessa besta acomodava uma estranha ninhada: eram cerca de seiscentos corpos acorrentados, entre vivos e mortos, amontoados em um espaço pequeno demais para a quantidade de gente. O teto era alto somente o suficiente para que as crianças e os mais baixos pudessem ficar em pé.
A palha sobre a qual estavam amontoados a essa altura era uma confusão de morte e dejetos humanos, e o cheiro era insuportável. Mas o pior era a fome.
Quando as escotilhas abriam, um pequeno grupo carregava os barris vazios que ali estavam, e substituíam por outros cheios de água e de uma pasta indecifrável, provavelmente uma mistura de farinhas com água.
Não era nem de longe suficiente pra saciar a fome de todos, apenas para mantê-los mais ou menos vivos durante a viagem, e eram os próprios escravos que se encarregavam da divisão.
A mulher não fazia ideia de quanto tempo estava ali. A ausência de luz, aliada às condições extremas, roubava o sentido do tempo. Duas semanas? Dois meses? Teria acreditado em qualquer período que lhe dissessem. De súbito lembrou a voz mãe — O tempo do corpo é diferente do tempo do dia — , e então lembrou de seu pai, de sua aldeia, da prateleira de ervas da sua mãe, dos doentes que os visitavam, dos partos que ajudava a fazer. Tudo agora parecia um sonho distante, e as imagens eram imprecisas e confusas. Até a memória pereceu às chamas e à brutalidade dos Bekyares.
Essas lembranças deveriam tê-la feito chorar, mas os fragmentos vinham-lhe na mente como se fossem a história de outra pessoa. Seu coração estava seco.
Sentiu as pálpebras pesarem e fecharem lentamente, quando as escancarou num susto — Se fechar os olhos agora, não abro mais — . Não sabia como, mas tinha certeza disso. Não sabia porque, mas tinha medo.
O torpor voltou a tomar conta do seu corpo, e ela caía pra dentro de si — Eu não posso… — E as pálpebras foram se fechando novamente — Eu não quero… — E o mundo em volta foi se apagando — Ajuda… — Tentou falar, mas o corpo não respondeu.
Seus olhos fecharam e ela caiu para a escuridão. Mas não era uma escuridão de olhos fechados. Mesmo com os olhos fechados, continuamos a olhar para nossas pálpebras.
Era uma escuridão absoluta, que ela jamais tinha visto, que ela sequer imaginava que podia existir.
Sentiu uma luz projetando-se atrás de si, e virou para olhar. Naquela insólita escuridão corria um rio de luz infinito, e do outro lado havia uma galinha. O animal estava sentado, e virava a cabeça de um lado para outro. A galinha levantou e revelou o ovo que estava chocando. Deu algumas voltas em torno do ovo e voltou a olhar a mulher.
Estava escuro, mas a luz do rio era morna. A mulher começou a andar na direção do rio. Avançou lentamente, atenta a uma possível profundidade, mas quando tentou mergulhar os pés na luz percebeu que ela não cedia ao seu peso, e caminhou sobre ela até o outro lado como se terra fosse. A galinha aguardou a travessia sem sobressaltos, parada ao lado do ovo. Quando a mulher chegou ficou parada em frente ao animal, sem saber ao certo o que fazer, e se agachou para acariciá-lo. A galinha recebeu os afagos, mas olhou para ela, e voltou a olhar para o ovo. Fez isso três vezes, até que empurrou o ovo, com sua cabeça, para a direção dela — Isso é pra mim? — Perguntou com um sorriso, segura de que se a galinha respondesse seria a coisa menos estranha a acontecer naquele lugar. Estendeu a mão para pegar o ovo, mas assim que o pegou, sua casca começou a rachar, e pela pequena fenda começou a crescer uma vinha. Crescia timidamente até que, de repente, o ovo rompeu-se e a vinha se projetou para fora assumindo uma proporção gigantesca em um instante. Neste momento, de dentro do ovo começou a jorrar uma torrente de animais e plantas em quantidade e variedade inimagináveis, todos ao mesmo tempo: tigres, zebras, aves de plumagem irreal, árvores comuns e grotescas, peixes terríveis, sapos, baleias, serpentes e criaturas de todos os tamanhos e tipos, jorrando sem fim do ovo que tinha na palma da mão, se alastrando pelo escuro infinito e preenchendo cada palmo do que antes havia sido a escuridão. Para cada canto que olhava era um desordenado de seres e plantas, uma profusão de cores e estampas, crescendo e em movimento, até não conseguir mais enxergar a escuridão, e não conseguiu mais se mover. Sentiu um calor subindo pelos seus pés e entendeu que o rio de luz transbordava. Transbordou tanto que estava chegando à altura de sua boca. Tentou se mover, mas o espaço estava completamente preenchido por penas, pelos e folhas, indistintos e presentes como o próprio ar. O rio de luz cobriu sua cabeça quando acordou num grito.
No porão do navio todos estavam acordados e olhando atentamente para cima, tentando decifrar com os ouvidos o que acontecia nos convés. Era uma confusão de aço e gritos. Teriam sido atacados por piratas?
Depois de um período que pode ter sido cinco minutos ou uma hora, uma escotilha abriu, e por ela diversos soldados começaram a entrar. Atrás deles desceu por último um homem alto em cota de malha, portando uma alabarda cravejada de jóias. Enquanto os soldados libertavam os cativos das correntes, a voz do homem ecoou por todo porão — Falo em nome da cidade de Senghor. Tomamos controle do navio, subjugamos seus captores e vocês serão levados em segurança até o porto da cidade. Quando aportarmos vocês serão encaminhados a um alojamento, onde terão toda assistência necessária enquanto preparamos os navios e as caravanas para mandá-los de volta a suas cidades natais.
Quando o soldado se aproximou da mulher para soltar suas correntes, a incredulidade lhe estampava o rosto.
— Algo errado? — a mulher perguntou.
O soldado pareceu desconcertado, parecia que não esperava que lhe dirigissem a palavra.
— Me… me desculpe, eu não queria te deixar desconfortável… é que… você parece tão…tão bem. — Baixou os olhos, tirou as correntes e se dirigiu para o cativo ao lado.
Ela estendeu as mãos para olhá-las, e se surpreendeu ao não vê-las magras, com a pele colada aos ossos. Olhou para baixo e apalpou os seios, estavam redondos e firmes, como tinham sido todo tempo antes de sua captura.
Demorou alguns dias para os cativos voltarem a se acostumar mesmo com coisas simples, como caminhar pelo convés, apreciar a brisa do mar, comer peixe e não dormir em cima das próprias fezes.
Aos poucos iam recuperando o peso, o ânimo e a saúde.
Se os ventos ajudassem, dentro de uma semana estariam em Senghor e poderiam retomar o curso de suas vidas.
Naquele porão onde ficaram a mercê da morte por quase um mês e meio, uma outra mulher e seu bebê ainda por nascer tinham inesperadamente sobrevivido, mas ao que parece até a criança estava farta de confinamentos, e requisitava sua liberdade. O líquido começou a escorrer pelas pernas da grávida, e o parto era inevitável. A mulher lembrou-se do rio de luz, e começou a solicitar o material e a coordenar as pessoas em volta para auxiliar no procedimento .
Em pouco tempo a grávida estava deitada sobre panos, com a mulher ajoelhada em sua frente e cercada por uma panela grande de água fervente, uma bacia, e mais facas e adagas que teria capacidade de usar. Uma pequena multidão se formou na volta, mas assim que o parto começou a demorar e a mulher a sofrer, foi se dispersando. Depois de muito esforço e paciência, a mulher trouxe ao mundo uma criança muito magra, e a mãe começou a parir uma poça de sangue. Começou a desbotar, suava frio e tremia, mas teve forças pra perguntar — Vive? — E a mulher são sabia como responder aquilo. A criança estava ofegante, o coração batia fraco, e não se mexia. A desolação nos olhos da mãe atravessou a mulher como uma faca, e lágrimas involuntárias caíram dos olhos. Num gesto impensado, com a criança sob as mãos, levou em direção à mãe. Neste momento, seus olhos ficaram completamente brancos, e emanou dela uma luz suave. Permaneceu nesse transe por um instante, e voltou a si quando ouviu o choro da criança. A cor voltou aos seus olhos, a criança começou a se mexer, e a mãe parou de sangrar.
Chegando em Senghor, todos estavam com um aspecto muito melhor, e muitos deles graças aos estranhos poderes recém descobertos pela mulher. Os soldados organizavam as pessoas que desciam pelas pranchas, para encaminhá-las a alojamentos improvisados. A mulher ouviu um soldado meio irritado , falando em voz alta — Xô! Sai daqui! Te boto numa panela hein!? — Quando ela olhou na direção do soldado, a galinha que tinha encontrado no centro da escuridão e chocado um ovo de onde saiu toda vida do mundo, estava ali parada, esperando no porto como se fosse um cão, desviando das pisadas com uma agilidade incomum para uma galinha. A mulher se aproximou, fez um cafuné no animal, ao que ele respondeu se empoleirando no seu ombro e esfregando sua cabeça contra a cabeça dela.
Os guardas organizaram as pessoas em filas na frente de diversas mesas cheias de papel, onde outros funcionários perguntavam para cada pessoa — Qual seu nome? Onde é seu casa? — Anotavam em um papel e chamavam o próximo. Quando chamaram a mulher, o escrivão perguntou:
— Qual seu nome? Onde é a sua casa?
— Meu nome é Miriam Makeba, e minha casa é aqui.
E Senghor virou seu lar, ao longo dos quarenta anos que seguiram essa história.
