Espelho partido
Desconfio que toda pessoa, ao nascer, esteja sujeita a uma narrativa sobre si contada pelos outros. E que essa condição desempenha um papel decisivo no curso de nossas vidas. Um tipo de destino ou maldição.
Aqueles que acreditam no indomável espírito humano podem achar repulsiva a hipótese de que temos pouco controle sobre aquilo que podemos ser. Que as palavras nos moldam. A consciência torna-se quase um mecanismo de defesa contra as histórias que contam sobre nós. Vamos deixar que eles tenham razão? Vamos fazer o contrário? Isso sempre acaba nos pautando de alguma forma. É difícil ter uma outra perspectiva.
Li por aí que o prodígio chinês por trás do Deepseek estava dizendo que aquilo que convencionamos chamar de inteligência talvez seja nada mais que um processo linguístico. Como se o nosso cérebro precisasse evoluir a tal ponto de criar consciência de si próprio para, finalmente, criar, entender, repassar e analisar a linguagem.
Repare que, por linguagem, estou falando aqui de um sentido mais amplo e desatrelado da palavra, como a linguagem visual, corporal, musical e tantas outras. Mas sempre atrelado à necessidade de entender a si mesmo e ao mundo.
Gostaria de saber o que Helen Keller teria a dizer sobre isso. Ela foi a primeira pessoa surdocega a conquistar um bacharelado e teve sua história retratada no filme O Milagre de Anne Sullivan. O filme ilustra a jornada da professora, interpretada por Anne Bancroft, que tenta encontrar meios de se comunicar com Helen. Acho particularmente interessante ressaltar que Helen Keller era tratada pela própria família como um bichinho selvagem, e ela se comportava de acordo. O dito milagre no nome do filme é Anne Sullivan encontrar meios para ensinar a Helen uma correlação básica entre signos e significado — o que eu chamaria, de forma cientificamente irresponsável, de linguagem. Esse momento foi magistralmente registrado na descoberta não da palavra, mas da associação entre a água e um gesto possível de ser compreendido pela garota. Uma linguagem de sinais transmitida através do tato.
Inclusive a Anne Bancroft foi pivô de uma das mais deliciosas demonstrações públicas de despeito por conta desse papel. Bette Davis e Joan Crawford, as rivais lendárias de Hollywood, protagonizaram o thriller O que terá acontecido com Baby Jane?, e havia a expectativa que ambas concorressem ao Oscar. Mas somente Davis foi indicada, junto com Bancroft.
Joan Crawford basicamente conspirou para que Anne Bancroft ganhasse, só para sacanear Davis. Era a última grande jogada da Davis para conseguir um terceiro Oscar — um feito inédito até então. Acabou que Bancroft ganhou. E quem foi à cerimônia em seu lugar pra receber o prêmio? Joan Crawford.
Bette Davis viu o tão sonhado Oscar parar nas mãos de Joan Crawford, por pura trapaça. E Crawford apareceu em todas as fotos na festa da cerimônia segurando o prêmio ao lado dos demais vencedores da noite.
Essas rivalidades femininas, em grande parte, se constroem a partir das narrativas alheias, que traçam trincheiras invisíveis. Não chega a ser uma fatalidade, mas essas trincheiras precisam de muito pouco para ganharem corpo físico.
Sei que estou divagando um pouco demais, mas tudo isso tem relação com o que realmente quero falar. Quero falar de meu irmão. E de mim, evidentemente.
Nascemos de uma mulher que pouco conviveu conosco. Segundo relatos da família, vivi com ela até meus seis ou nove meses de idade, e meu irmão até dois anos e pouco.
Minhas tias e minha avó paterna, que efetivamente nos criaram, sempre disseram que eu era novo demais para entender e sofrer com a questão do abandono, mas que meu irmão, já com a cabeça formada, sofreu demais por isso.
E aqui entramos num paradoxo: ou elas realmente estavam certas, ou romantizaram a questão com uma consistência narrativa boa o suficiente para que acreditássemos que essa era a verdade — e não apenas uma versão dos fatos.
Enquanto eu era o bebê que só tinha memórias do afeto na primeira infância, meu irmão já era a criança traumatizada pelo abandono e pela negligência materna.
Imagino que tenha sido difícil para uma criança lidar com o olhar de pena condescendente, o mesmo tipo de olhar que os caridosos dão aos deficientes e aos mendigos. Nunca conversei com ele a respeito, mas talvez sua raiva e seu frágil senso de identidade tenham sido moldados por essas relações vividas através da lente do abandono. Qualquer malcriação, rebeldia ou ato violência era automaticamente justificado. Hoje, vejo que muitos desses traços e comportamentos nada tinham a ver com isso e pediam outro tipo de acolhimento e de resposta — além de serem absolutamente normais. Nossas matriarcas não fizeram isso por maldade, vale citar, eram todas muito afetuosas. Só não tinham muita inteligência emocional.
Cabe ressaltar que até nossos corpos tinham um apelo irresistível à narrativa de rivalidade.
Eu me pareço muito com nosso pai. Ele se parece muito com nossa mãe. E eles não se pareciam em nada.
Eu tinha pele e olhos claros, cabelos cacheados, era gordinho, canhoto, tinha um corpo redondo e inofensivo, lento e confortável feito um travesseiro ou bicho de pelúcia. Meu irmão tinha os olhos e cabelos de um negro impetuoso e arguto. Sua pele tinha uma cor terrosa, era magro, destro e cheio de arestas. Espinhoso e rápido como uma lâmina.
Eu era o delicado, sensível, introspectivo, tímido. O que não dava trabalho, aquele que sempre ia bem na escola. Meu irmão era o bom no esporte. O agitado, violento. Meio líder, meio protagonista. Era articulado e afrontoso. Ele dava problema na escola, mas eu sempre soube que era só um gesto de desdém à autoridade moral da instituição. Porque, inteligente, ele sempre foi.
Ele escreve melhor do que eu. Hoje sou bastante consciente dos meus defeitos e qualidades, possibilidades e limitações, então não digo isso como uma frase de impacto. Não se trata de falsa modéstia nem de algo demeritório. Meu irmão é o melhor escritor que conheci pessoalmente, e vários de seus colegas do curso de Letras concordavam comigo.
Eu não via meu irmão como um rival a ser superado.
Eu o enxergava com medo e fascínio, como um animal selvagem e majestoso. Qualquer ameaça de agressão que me fizessem, eu tinha o trunfo de tê-lo como irmão mais velho. Eu me sentia protegido dos outros, mas à mercê dele, e esse era o preço que eu tinha que pagar.
Ainda há pouco tivemos uma discussão, e ele me acusou novamente de ser covarde. Nesse particular, ele está certo, porém compreendi que essa covardia também vem de um forte senso de sobrevivência e, além disso, de hedonismo. É um tipo de força. Em alguma situação limítrofe, acredito que minha cautela excessiva poderia nos salvar, evitando que corrêssemos riscos desnecessários, enquanto ele seria aquela força catalisadora da ação quando ela se impusesse inevitável. Seríamos um bom time.
Fomos um bom time em algumas épocas. Já tivemos uma boa convivência e, quando estávamos assim, podíamos conversar profundamente por olhares, com aquela cumplicidade única que só conseguimos ter com um irmão a quem amamos de verdade, e não por uma suposta obrigação de sangue.
Especialmente no final do ensino médio, quando ele repetiu um ano e fomos colegas na mesma sala, no turno da noite. Não se tratava apenas dele ver além da minha máscara de menino correto, testemunhar ou ficar sabendo de pequenos delitos ou perversões que eu cometia e que são obrigação de qualquer jovem cometer. Nessa época, nos tornamos verdadeiros cúmplices, incendiando algumas aulas de história com debates que engajavam professores e colegas, com rapidez de raciocínio e humor ácido. Ao final das aulas, íamos para uma espelunca que havia se tornado o ponto de encontro dos adolescentes que bebiam sem fazer muita questão de esconder dos pais. Foi nessa espelunca que fizemos uma dupla campeã de Fla-Flu, que me parece ser um nome tipicamente gaúcho para pebolim ou totó.
Mas cada uma dessas épocas em que nos aproximamos teve um final abrupto e violento. E eu sempre achei que essas coisas aconteceram a troco de pouca coisa, ou até mesmo de nada. Ele me intimidava e tinha uma reação desproporcionalmente violenta cada vez que eu queria estabelecer algum limite, por menor que fosse. As agressões sempre foram mais psicológicas que físicas, embora ele me batesse com certa frequência quando éramos menores. E, algumas vezes, além do razoável. Como na vez em que atirou uma tesoura na direção do meu rosto e me cortou muito perto do olho esquerdo.
Nenhum dos horrores que ele me impôs foi pior do que a noite em que tentou me arrancar à força do armário. Eu tinha por volta de 13 anos, e minha homossexualidade sempre foi tratada como uma certeza velada por toda a família. Havia uma aura de tabu e de medo, como se ninguém quisesse enfrentar aquilo de frente. E eu queria menos que todo mundo.
Meu irmão sabia disso e frequentemente fazia insinuações, sempre duramente repreendidas. Como ele podia dizer uma coisa daquelas? Ainda que o dito fosse só a verdade que eles próprios se recusavam a dizer em voz alta.
Estávamos sozinhos de madrugada em casa, imersos numa penumbra. As únicas luzes acesas eram de outros cômodos. Tínhamos bebido um pouco e, na sala de piso xadrez preto e branco, meu irmão falava num tom meio jocoso, com uma crueldade e frieza aterradoras. Todos na família sabiam que eu era gay. Todos viviam falando disso pelas minhas costas. Por que eu não acabava de vez com isso? Por que eu não assumia de uma vez? Esse interrogatório durou um tempo, não foi algo breve.
Eu me senti encurralado. Talvez ele até tivesse uma boa intenção, mas tive a impressão de que aproveitou demais aquele momento, minha confusão, minhas patéticas tentativas de negar tudo que ele dizia, dando risinhos de canto de boca enquanto eu tentava mentir. Ele atirou muitas pedras num armário de vidro. Talvez não soubesse quão fundo esses cacos iam cortar minha carne, e quantos deles ficariam aqui dentro por muito tempo ainda. O quanto a perspectiva de ele próprio deixar de me amar por algo que estava além do meu controle me aterrorizava. Ou talvez soubesse muito bem. E é nesse tipo de dúvida que cresce minha desconfiança. Ele poderia ter me estendido a mão, me dito que estaria ao meu lado, que ficaria tudo bem. Por que não o fez? Lembro de ter vomitado naquela noite e posto a culpa no álcool.
Mesmo nos momentos em que nos aproximamos de novo, nunca deixei de desconfiar dele. Não era aquela desconfiança da infância, de estar perto de uma fera amoral que pode atacar sem maldade, mas a desconfiança de estar lidando com um narcisista que precisa me machucar para afirmar sua dominância. E que sabia muito bem como fazê-lo.
Sei que meu irmão percebe essa rivalidade não por inferências criativas da minha parte, mas por ouvir da boca dele em mais de uma ocasião. Quando passei no vestibular em uma universidade federal, para zero espanto de minha família, ele estava cursando Direito em uma universidade privada de baixa qualidade, bastante aquém de suas capacidades. Um ano depois, passou em Letras numa colocação melhor que a minha, entre os cinco primeiros, e com uma média maior também.
Ele nunca me venceu na matemática, algo que até hoje reconhece com certo respeito e serenidade. Para ele, sou o analítico. Ele é o passional da história. É uma versão que se encaixa no discurso que ele reserva para mim. De resto, ele tentou me provocar inveja mais de uma vez com seus resultados, conquistados com menos esforço que os meus. Me lembro que mesmo nessa época achei meio infantil e inócuo, até porque eu nunca duvidei que ele fosse capaz disso. Quanto as minhas tias e vó, influenciadas pelo desempenho pior que ele apresentou no colégio, talvez tenham recebido a notícia com mais surpresa.
Posteriormente ele abandonou o curso e ingressou, na mesma faculdade, em Educação Física. Dessa vez passando em segundo lugar.
Alguns anos mais tarde ele me confessou casualmente que só prestou vestibular na universidade federal porque eu tinha passado. E não foi motivado por um sentimento de inspiração, mas de competição mesmo. Será que ele sabe que eu não quero ser rival dele? Se eu consigo ou não é outra história, mas querer eu não quero. Só que isso vai contra outra narrativa que ele tem sobre mim, que eu sou uma pessoa dissimulada e traiçoeira. Isso deve ser mais confortável do que acreditar que eu só não confio nele. E talvez tenha bons motivos para não confiar.
Em outra ocasião ele reconheceu que me atormentou e me pressionou muito na infância porque queria que eu fosse uma pessoa melhor. Uma pessoa mais parecida com ele. E não estou criando essa fala, ele disse isso. Nesses termos.
Conforme fui amadurecendo percebi que muitas das narrativas que a minha família tinha construído a meu respeito não tinham respaldo na realidade há um bom tempo. Que eu era preguiçoso, por exemplo. Que eu era irresponsável. Que eu perdia compromissos por dormir demais. Ficou difícil acreditar nessas narrativas depois que fiz cinco anos de faculdade, desde o segundo semestre intercalando com bolsa, estágio ou trabalho, e absolutamente ninguém precisou me acordar um dia que fosse, para nada.
Eu fui um jovem adulto funcional.
Percebi que sobre nós sempre existiu um prólogo que ditava como nos tratavam e que tinham medo que a gente seguisse à risca. O mesmo caminho dos homens de nossa ascendência: preguiçosos, alcoólatras, viciados em jogos, em drogas, mulherengos, violentos, parasitários, irresponsáveis e disfuncionais. E, no que tangia a nossa ascendência masculina, essas narrativas eram todas verdadeiras. Com um olhar mais distante e sereno hoje eu consigo entender como essas coisas podem ter sido desdobramentos de problemas psicológicos aliados à pouquíssima regulação emocional que nunca foram tratados de forma séria. E foram encaradas como falhas de caráter, pura e simplesmente.
Não aconteceu de repente, mas, aos poucos, percebi que, por mais que fosse inútil o esforço de tentar me tornar impermeável às narrativas alheias, eu podia dar minha contribuição. Eu também era responsável por escrever minha história. Senão melhor, pelo menos mais íntegra.
Esse processo foi longo e culminou em outra grande discussão que tivemos. Para mim, ele é um orador hábil, um manipulador eficiente que consegue fazer me sentir culpado por qualquer tentativa de resistência a seus abusos. Mas, no dia em que expressei um incômodo qualquer que ele estava me causando e ele respondeu com a desproporcional violência de sempre, algo mudou. Ele mirou nas habituais feridas abertas, mas elas tinham cicatrizado de alguma maneira.
Eu estaria contando uma mentira se não confessasse que me deu certa satisfação saber que, após essa discussão, assim que saí de casa, ele começou a chorar, a socar as persianas de madeira do apartamento onde eu morava, meio desatinado, dizendo que eu não podia ter feito aquilo com ele.
Desde então tenho a impressão que ele não me enxerga direito. Não consegue entender meus sentimentos, prever meus pensamentos. Não consegue mais me manipular. Essa ideia, e sei que pode ser só uma ideia, me traz conforto e segurança. Talvez ele não cogite que não é por falta de amor que eu me distancio. É por autopreservação. É para tentar fugir desse ciclo. Não sou Abel, nem ele Caim. Mas cada vez que a gente conversa eu começo a procurar as engrenagens, imaginando como ele quer me machucar dessa vez. Meu rancor e minha desconfiança não me deixam baixar a guarda em sua presença. E acho que ele é orgulhoso demais pra me pedir desculpas.
Hoje enxergo ele como um bêbado no final da festa, dançando num salão vazio com um par imaginário. Essa imagem me traz uma certa tristeza, e uma certa paz também.
Talvez ele nos enxergue um pouco como as irmãs interpretadas pela Bette Davis e Joan Crawford no filme que falei lá no início, que tem numa grande confissão de culpa a reviravolta da história. Quando a boazinha Blanche na hora da morte revela pra terrível e já enlouquecida Baby Jane que a desgraça que se abateu sobre as duas na realidade tinha sido obra da Blanche. E quem se culpou por isso foi a Jane. A vida toda.
E, instantes antes da morte, ele também gostaria que fizesse uma confissão — só que dessa vez não faço ideia de quê. E então, tomado pela tristeza e pela tragédia, ele arremataria com a dolorida frase: Quer dizer que, esse tempo todo, nós poderíamos ter sido amigas?
Poderíamos. Uma pena que não fomos. Mas e quanto ao que podemos? Talvez eu seja aquele bêbado dançando sozinho. Talvez eu tenha sido aquele bêbado o tempo todo. Não vivemos todos recolhendo esses cacos, tentando dar sentido a um punhado de imagens fragmentadas? Tentando se machucar o menos possível nesse processo? E talvez a verdade por trás de tudo seja apenas mais crua e menos interessante.