Fábio Camargo
5 min readAug 30, 2022

Entreabriu um olho quando sentiu um faixo de luz morna beijando seu rosto. Fechou logo em seguida, franziu o cenho e manteve os olhos fechados até sentir que eles já haviam se acostumado à claridade. A dor de cabeça era insuportável e o gosto amargo na boca em nada ajudava a náusea já instalada, mas a isso já estava acostumada. O estranho foi ter acordado com um teto sob a cabeça.

Antes de sua morte, Astrid Varnay era uma orgulhosa capitã de sua tribo. Todos os dias, mal a aurora irrompia a névoa diáfana que repousava sobre os picos da Espinha do Mundo e lá estaria ela, em frente a uma fogueira recém acendida, preparando o desjejum que partilharia com seu rival naquele dia, num misto de sincera generosidade e demonstração de supremacia. Anos antes fazia também uma porção extra para seu irmão Zakan, mas agora ele já tinha idade suficiente pra preparar sua própria comida, e ela não iria acostumá-lo mal, por mais que quisesse.

A cada dia o chefe atribuía uma tarefa diferente a uma dupla de capitães, de forma que todos integrantes pudessem ter um mínimo de proficiência nas tarefas básicas necessárias a sobrevivência da tribo. Os capitães eram mandados em duplas, tanto para que o mais experiente compartilhasse do seu conhecimento com o parceiro do dia, quanto para estimular a rivalidade que permeava todas as relações, dentro e fora do clã, na esperança de que assim fossem forjados o caráter e a habilidade de cada um.

Entre os novatos, Astrid Varnay não tinha rivais para patrulhar ou forragear. Na caça, somente Naragun estava à sua altura. Não era tão forte quanto Astrid, mas era bastante engenhoso e seu conhecimento sobre o comportamento dos animais compensava.

Já havia um entendimento tácito de que ela seria a próxima chefe quando Kulagath não pudesse mais ocupar o posto. Ao próprio Kalugath agradava a ideia. Ele imaginava que quando o tempo lhe nublasse a visão e, como incontáveis idosos de sua raça, o fizesse pisar em falso e cair em algum penhasco inaudito tendo apenas a morte por asas, cairia para o esquecimento com um sorriso nos lábios sabendo que deixaria os seus em mãos competentes.

No fatídico dia, Astrid e Naragun foram designados para a caça, e ele logo tratou de encontrar rastro de um grupo de bodes. A carne era deliciosa quando bem preparada, e seus couros e cascos também eram apreciados pelos artesãos do clã. Seguiram os rastros por cerca de meia hora, até que eles se viram envoltos por uma repentina névoa. Não seria incomum se fosse inverno, ou de noite, mas era uma manhã de verão e até então a vista estava particularmente nítida.

Astrid ouviu uma risada ecoando de diferentes lugares dentro da névoa, e uma única palavra, como saída de duas gargantas num escárnio uníssimo

— Idiotas!

Ao fim da palavra, Astrid ouviu a lança de Naragun silvar entre a névoa e lhe perfurar o ombro.

— Naragun, o que é isso?

Perguntou em pânico, erguendo por reflexo sua alabarda. Naragun se mantinha impassível enquanto desferia inúmeros golpes de lança, que Astrid aparava. A voz que ria na névoa lhe disse

— Lute, ou vai morrer.

Astrid se manteve na defensiva, até que ouviu a voz de Naragun gritar:

— Socorro, alguém me ajude!

Era a voz dele, sem sombra de dúvidas, embora não saísse de sua boca.

Teve medo, como nunca antes houvera experimentado. Ela teria que desacordá-lo para entender o que estava acontecendo, e só conseguiria isso se inutilizasse sua lança.

Sentiu o sangue ferver, e concentrou toda a sua força em um golpe decisivo para quebrá-la.

No meio do golpe, as mãos de Naragun largaram a lança, sua expressão de impassível se tornou aterrorizada, e só teve tempo para gritar:

— ASTRID NÃ…

E a lâmina da alabarda lhe atravessou o pescoço. Na mesma hora, a névoa foi se dissipando e o que três membros da tribo conseguiram ver foi a cabeça de Naragun sendo projetada alguns metros longe de seu corpo e Astrid coberta em sangue com a alabarda em riste.

Nunca se viu tanta divergência naquele clã quanto nos três dias que seguiram a morte de Naragun. Astrid não mostrou resistência alguma quando as três testemunhas, confusas e receosas, a escoltaram de volta para tribo. Ela de bom grado deu publicamente sua versão dos fatos, em frente ao chefe. Houve muita dúvida sobre o que tinha acontecido, mas poucos acreditaram na história que ela havia contado. As especulações foram muitas: que ela havia enlouquecido, que sofreu de uma alucinação. Inclusive algumas hipóteses mais sórdidas, como a que apontava que ela matou Naragun de forma premeditada para eliminar qualquer possível concorrente a chefe da tribo. Ou que Naragun havia planejado matá-la e ela acabou só dando o troco.

Esse tipo de intriga era sabidamente comum entre os habitantes de baixo do mundo, entre os Goliaths não. Aquele tipo de controvérsia, sendo Astrid culpada ou não, seria suficiente para envenenar os ânimos da tribo. Sua mera permanência entre eles seria fonte de uma perene discórdia, e vivendo da forma como viviam, não podiam se dar a esse luxo.

Foram dias de acalorados debates, e o veredicto final foi o exílio. Kulagath convocou a tribo e proferiu a sentença com voz embargada, era um dos que acreditava em Astrid. Ela aceitou a sentença com forjada dignidade, mas por dentro estava destruída. Não conseguiu encarar Zakan e partiu logo após a sentença, sem se despedir de ninguém.

Aos primeiros passos que deu em seu cadafalso de pedra, chorou. Pensou algumas vezes em se precipitar para a morte. O ambiente era propício, dois passos à esquerda ou à direta, aqui ou ali, e tudo estaria acabado. Afastava logo esses pensamentos, haveria de cumprir sua pena. Se manter viva era a última prova de lealdade que tinha para com seu povo. A última ordem de seu chefe. Era nisso que queria acreditar.

Teve muito tempo para se fustigar até descer a montanha e chegar a Mirabar. A quantidade de pessoas pobres, fracas, velhas, trapaceiras e doentes lhe davam a impressão que estava em algum inferno. Suas portentosas casas de madeira e pedra nada mais eram que cascos fabricados para proteger a frágil carcaça daquelas raças pequenas. E seu lugar era ali, com aquela escória.

Sua avantajada constituição física lhe garantiu diversos trabalhos menores, também ficou muito espantada ao saber o que era e como funcionava a prostituição, e vagou com uma folha perdida nos ventos cheirando a mijo da cidade. Foi roubada e recuperou seu dinheiro inúmeras vezes, constantemente se envolvia em brigas nos bares que passou a frequentar. Não compreendia a excitação dos jogos de azar, mas a bebida virou um alento e, por muito tempo, única companheira.

Agora acordava dentro de uma casa, sem saber como fora para ali. Se ficasse em pé sua cabeça por pouco não chegaria ao teto. Tentou reconstituir os passos da noite anterior, e lembrou de ter brigado em um beco de uma cidade. Yatar? Isso…se não lhe falhava a memória. Precisava urgentemente de água… mas a quem ela deveria chamar?

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programador, empresário, cozinheiro, filantropo, ator, músico, poeta, tarólogo e dramaturgo: coisas que falho em ser mas sigo tentando

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