Astros da Tassilônia

Fábio Camargo
7 min readJul 9, 2021

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— É aqui? Já chegamos?

Lily repousou o livro, fechou os olhos, arqueou as sobrancelhas e respirou longa e profundamente. O marido manteve os olhos baixos e mal pôde conter o riso.

— Ainda não Sancho.

Haviam desembarcado de navio em Magnimar e se dirigiam a Pontareia numa luxuosa e lenta carruagem. O pequeno halfling queria conhecer logo a cidade a que os pais chamaram ‘pequena e simpática’. A ansiedade era tanta que praticamente a cada vilarejo, fazenda ou construção, o menino repetia a pergunta. Perguntou mesmo se Magnimar era Pontareia, provocando o riso dos pais e de quem mais pode ouvir. Por engraçado que fosse, não era totalmente absurda a hipótese considerando que Absalom era tudo que aquela criança conhecia.

Drogo e Lily planejavam há tempos uma ida ao festival Caudandorinha. Tinham um carinho todo especial pelo evento onde se conheceram, ele um comerciante em início de carreira e ela uma garçonete pouco dedicada.
Empenharam-se no projeto de construir uma família e um patrimônio, e agora gozavam da boa vida pela qual tanto lutaram. Ambos tinham faro para os negócios e, mesmo agora, gastavam com parcimônia. Nos primeiros anos os negócios e o ouro contado tinham atrasado a viagem, depois teve a gravidez e o nascimento do Sancho. Agora, sem álibi algum, se dirigiam ao festival.

Os dois estavam empolgados, mas Sancho estava extasiado. O marido riu da última pergunta porque bem sabia que aquela ansiedade era culpa deles, dos relatos empolgados e apaixonados sobre o festival e a cidade. Talvez toda beleza que ele contavam estivesse nos olhos deles somente, e no final das contas cidade e festival nem fossem lá grandes coisas. De toda forma era, na pior das hipóteses, uma oportunidade saudável do Sancho aprender a lidar com a frustração.

A cidade podia não ser grande, mas estava lindamente decorada e era de fato aconchegante. A Sancho agradou tudo, principalmente ver seus pais tão felizes. Drogo sem casaca, bebendo com amigos e jogando dados, sua mãe com um vestido simples a rodopiar descalça em cima da mesa, ao som de um violão. O perfume de alfazema da mãe misturado ao forte cheiro de peixe do mercado próximo ficou impregnado na sua memória.

A correria das crianças atrás das inúmeras borboletas, os jogos, as risadas, tudo isso vinha à memória. E de repente outras imagens se intercalavam, se juntavam a uma música, a um canto agudo e rouco sobre morte. O pai olhando pra ele, com um virote atravessado na garganta. A mãe pisoteada por uma turba assustada, e ele ao longe tentando inutilmente se aproximar dos dois. A fumaça e a confusão. Algum braço adulto a lhe erguer e pôr nos ombros junto com outras crianças que ele não conhecia, e indo cada vez mais longe.

Acordou.

Tinha dormido sentado, debruçado na mesa. A vela ainda ardia mas estava no fim. Sobre os braços, inúmeros pergaminhos onde ele tentava decifrar as escritas tassilonianas que a senhora Jastra tinha passado.

Contavam seis anos desde a tragédia em Pontareia, onde se viu alçado de uma vida confortável na capital do mundo à uma vida de fome nas ruas de uma cidade pequena. Era pouco mais que uma criança agora, mas muita coisa tinha acontecido e ele tinha amadurecido consideravelmente. E, mais importante, agora ele era um explorador.

Recapitulando os eventos de sua pequena vida devia tudo ao senhor Degel. Na dúvida se atribuía o encontro a Desna, Chaldira ou Pharasma, agradecia a todas.

Logo depois de ficar órfão aprendeu a viver por conta própria. Dormia às vezes na Academia Turandarok quando fazia muito frio, mas sua estadia era sempre muito curta posto que as crianças de lá por algum motivo não gostavam dele e o agrediam frequentemente. Um dia roubou um peixe enorme do mercado e começou a se embrenhar através de passagens e espaços que nenhum homem adulto passaria, e que ele conhecia como ninguém. Ao passar a fenda de uma cerca, olhando para trás a ver se não era seguido, esbarrou com tudo numa armadura de metal. Caiu com a bunda no chão abraçado ao peixe, levantou os olhos e se deparou com aquela figura de cabelos resplandecentes, com olhos ternos mas imponentes como dois sóis. Aquele homem se agachou, estendeu uma mão e disse

— Garoto, vem comigo! Qual seu nome?

Por mais que fugir daquele que todos chamavam de santo e herói de Pontareia fosse impossível, foi mais por confiança e menos por medo que também estendeu a mão ao homem. Sentiu um misto de genuíno afeto e uma autoridade quase palpável emanando dele, e lembrou que não sentia ambas coisas vindas da mesma pessoa desde que os pais morreram. Ere sempre um ou outro. De um guarda da cidade, ou de alguém que se compadecia daquela pequena figura a vagar como um rato pelas ruas da cidade.

— Meu nome é Sancho.

— Oi Sancho. Eu sou Degel. Tu tá com fome? — disse, apontando pro peixe

O menino de repente sentiu uma imensa vergonha do pescado que trazia entre os braços. Não respondeu a pergunta e, após um longo silêncio, entregou o peixe.

— Tu tá arrependido do que tu fez?

O menino assentiu com a cabeça.

— Então vem comigo. Não precisa ficar com vergonha, só que tu precisa saber que isso não é certo. Se fosse certo, tu não estaria te sentindo assim não é? E sabe de onde vem isso? É a luz de Sarenrae te apontando o caminho certo. E como ela brilha dentro de ti, é só deixar ele te guiar.

O homem acompanhou o menino até o mercado, pagou pelo peixe, fez o menino pedir desculpas e o levou até a Dragão Enferrujado. Degel contou a taberneira sobre o menino. Então disse a ele que pedisse tudo que quisesse, que seria por conta dele. Depois da criança se fartar, ele começou a peguntar sobe o que tinha acontecido e, ouvindo ao relato atentamente, às vezes olhava pra taberneira

— Sancho, tu já foi na Turandarok? Acho que lá é o lugar pra ti.

— Já fui sim, mas não gosto de lá.

— O que tem de errado lá? O Ilsoari te maltratou?

— Não, ele é esquisito mas é legal. As outras crianças de lá ficam me batendo.

— Tu tem que revidar — Interveio a taberneira — se tu não te impuser eles vão continuar batendo, lá na academia ou fora dela.

— Se eu fosse forte que nem ele eu faria isso — retrucou com raiva.

— Sancho, tu não tem que ser forte como eu, tem que ser forte como tu. Tu é só uma criança mas passou por coisa que muita gente adulta não passou. Tu é forte. Do teu jeito. Tu tem que achar um jeito de usar essa força pro teu bem, e pro bem dos outros.

O garoto sentiu que o homem falava com ele de igual pra igual,e isso lhe comoveu. Quis manter a pose, mas quando o lábio começou a tremer e seus olhos marejaram, percebeu impossível. E chorou. Chorou muito. Se jogou ao pescoço do Degel e o abraçou sem perceber. Ameiko e Degel ficaram aquela noite toda conversando com o Sancho, e estava tudo decidido. No próximo dia o herói de Pontareia em pessoa levaria Sancho à Academia, levando ele na garupa e fazendo questão que todos vissem. Ela prometeu que iria três vezes na semana pra visitar, ver como estavam as coisas, ensinar música… e ensinar a lutar. Degel ficou receoso com a luta, mas Sancho ficou tão empolgado que ele não conseguiu se opôr.

Ameiko cumpriu a promessa e ensinou todas as coisas, embora a luta tenha sido desnecessária. Os órfãos não ousaram maltratar o amigo do Degel, e as esporádicas aparições dele no orfanato foram mais que suficientes pra dissipar a maldade infantil, ou pelo menos desviar o foco.

Cada vez que Sancho podia observar de perto a chegada de Degel com seus companheiros de aventura, mais clara e verdadeira se tornava aquela fala de que as pessoas são fortes de maneiras diferentes.

Ao olhar incauto nunca que aquele meio-orc caquético conheceria os segredos do fogo e teria comungado dos mistérios arcanos com o próprio Nethys. Nem que aquela elfa alta e esguia, que agora ensinava tassiloniano na sede dos exploradores, tivesse posto sob seu domínio um gigante de vinte metros de altura. E lhe divertia o pensamento que aquele monge, com uns poucos panos a lutar quase nu, era um valoroso companheiro de luta ao lado de um resplandecente e metalizado Degel.

Por mais que as pessoas achassem exagerados os relatos do poder do mago ancestral que o grupo trouxe em forma de cadáver anos atrás, Sancho percebeu naquela vez o olhar atônito da Ameiko, a respiração suspensa daquele aprendiz do Degel , como se os quatro tivessem voltado do mundo dos mortos e a visão deles ali fosse um milagre.

Quando soube que Jastra estava na sede dos exploradores em Magnimar, fez de tudo que pode para se mudar pra lá. Aconteceu que Bethana, funcionária e amiga da Ameiko, conhecia uma viúva halfling de lá que precisava de ajuda pra tocar o mercadinho.

A viúva em questão se chamava Dora, morava embaixo da gigantesca ponte no bairro pobre de Magnimar. A casa era simples, e o quartinho do Sancho era um puxadinho de madeira. Não tinha luxo algum, mas também não faltava nada nem era infestado de pulgas. Ele e Dora se davam muito bem, tanto que quando ela percebeu que ele fazia mais dinheiro tocando sua música nas ruas do que recebendo pelo trabalho no mercadinho, dispensou para que ele se dedicasse somente a isso. Ele aceitou sob a condição de pagar pela estadia e pela comida. Era o mínimo que podia fazer. Era uma relação mais fraterna que maternal.

E agora ele era um membro certificado dos exploradores, tendo aulas de língua antiga com a Jastra em pessoa. Embora muito novo para os padrões halflings, se sentia um homem. E sentia que as coisas estavam em seu devido lugar. Degel , ao que parece, estava na Chaga do Mundo com Hasha, o monge esfarrapado, enfrentando demônios. Mahk’gor deveria estar viajando entre os planos explorando os mistérios do fogo, ou resmungando em algum lugar qualquer. Tudo estava em seu devido lugar, e saiu para caminhar.

Sentia a brisa fresca no rosto, saiu do jugo da ponte pra olhar o céu.

Começou a imaginar quais daquelas estrelas também viram o lendário império da Tassilônia. E quantas outras novas apareceram desde lá, e quantas outras teriam morrido. Se sentiu pequeno e oprimido pelo véu escuro da madrugada, com seus milhares de olhos brilhantes a lhe mirarem a cabeça. Até que, após um suspiro, pensou alto:

— Como será que se diz ‘estrela’ em tassiloniano?

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programador, empresário, cozinheiro, filantropo, ator, músico, poeta, tarólogo e dramaturgo: coisas que falho em ser mas sigo tentando

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